|
Beto |
No começo ele não lia realmente a sorte, nem era necessário: a pessoa entregava tudo o que queria saber nos primeiros 5 segundos de "leitura". Enquanto fingia embaralhar as cartas, observava o consulente e deixava que ele dissesse o que queria escutar. A história da vida dele era contada nos gestos, nas reações e nos trejeitos. Raramente tinha que recorrer à leitura do tarot, búzios, borra de café, leitura de mãos, vísceras, etc. Nos últimos tempos havia A Cigana, ela lhe dizia algumas coisas, avisava, mas na maior parte do tempo só observava de longe o que acontecia e fazia comentários engraçados sobre os clientes.
No começo achava que tinha ficado doido,
logo depois teve certeza,
mas na loucura encontrou um poder que só aumentava a cada dia.
Naquela noite o bar estava cheio, ele já havia feito 3 leituras "de mentirinha" como ele costumava chamar estas ocasiões onde ele só dizia o que as pessoas queriam ouvir, mesmo não admitindo. Pretendia fazer no máximo 5 ou 6, afinal também queria se divertir...
Havia colocado uma toalha branca sobre a mesa de metal e apenas uma cadeira de frente à sua, A Cigana orientou-o a fazer isso, além de ter certos objetos por perto quando fosse "ler a sorte", embora isso raramente acontecesse.
A cliente estava num grupo de cinco bebendo e fumando, antes de se sentar, eles riam bastante enquanto olhavam para seu trabalho e empurravam uns aos outros dizendo pra "arriscar a sorte". Estava habituado a este tipo de gente e não ligava para os "descrentes". Não demorou muito e esta moça, cheia de piercings e maquiagem pesada sentar-se à sua frente.
- Então você vê o futuro? - Ergueu a sobrancelha furada em diversos pontos.
- O futuro, o presente e o passado ás vezes - Sorriu para ela e ela sorriu de volta.
Não se engane, Beto, esta ai é só um rostinho bonito. E... ela é daquelas! ( Daquelas? O que você quer dizer com daquelas? Rosa? Me responda!)
- Então vamos ver o que você me mostra... - Ela acendeu um cigarro
- Qual seu nome?
- Liverpool - respondeu rápido, sem titubear, sem engolir, sem piscar mesmo sendo um nome incomum, ela era uma pessoa decidida.
- Posso falar tudo o que eu ver? - Fingiu embaralhar as cartas, mas esta era, na verdade a pergunta mais importante, que ditaria que tipo de leitura faria.
|
Rosa |
- Vamos ver se você consegue me surpreender. - ela respondeu, rápido, olhando diretamente nos olhos, sem titubear, engolir, piscar ou roer unhas.
Ele dispôs as cartas sobre a mesa:
- Você é uma pessoa muito decidida, segura de sí e tem poucos amigos de verdade. É difícil que você confie em alguém de verdade, não é? - Ele falou, lançando as primeiras impressões que havia colhido enquanto fazia as perguntas.
- E alguém tem amigos de verdade? - Ela flexionou os dedos, fechando a mão esquerda, deixando a direita aberta, enquanto acariciava com a ponta do dedo anelar os detalhes da toalha.
- Você perdeu alguém que você se importava muito recentemente, não? - Disse ele, virando uma segunda carta, que pouco importava qual fosse.
Ela apenas balançou a cabeça positivamente, deixando de tragar o cigarro que agora queimava entre os dedos indicador e médio, ela pareceu engolir a saliva, nervosa. Franziu a testa de leve, evocando lembranças.
- Ele está em um lugar melhor, Liverpool. Melhor do que qualquer lugar que a gente possa ir.
- Ah é? - Tragou o cigarro, fazendo uma careta.
Virou mais uma carta, sentiu a necessidade de ir mais fundo, era O carro, seguido da morte e de um 5 de paus.
- Você é uma pessoa muito madura para a sua idade por que já sofreu muito.
Beto, ela já matou gente. Muita gente!
(Por que você ta me dizendo isso?! CARALEO! Não precisava saber disso!)
- Você não mede esforços para conseguir o que quer - disse ele, apontando para O Diabo, que saiu logo em seguida.
Por que eu quero que você se livre logo dela, ela não é boa coisa, Beto! MESMO!
Veio logo em seguida a carta dos Amantes, invertida:
- Você, recentemente, fez coisas ruins, para conseguir algo... você conseguiu... mas isso não te trouxe paz, isso não te completou...
Ela tirou as mãos de cima da mesa e tragou mais uma vez, olhando dentro dos olhos.
Ela acabou de tentar ler sua mente, seu espertinho! Pra que dar esta bandeira toda? Por que não falou da merda de filhos que ela vai ter? De um cara moreno/loiro/japonês que ela vai aconhecer ainda? (Ler minha mente? Como assim? Ela é como eu?)
Virou mais três cartas, mas já nem olhava para elas, estava perdendo o controle, estava indo fundo demais...
- Existe uma pessoa que não gosta de você, uma morena, muito bonita e rica. Ela tem muitos amigos e eles vão tentar te fazer mal...
Ela quase fechou o olho direito e abriu levemente a boca...
Beto, já avisei! Pare AGORA!
A Cigana empurrou o copo de água que estava sobre a mesa, derrubando água no colo da cliente, que se levantou imediatamente, olhando assustada e com raiva para o cartomante.
(Por que você fez isso, Rosa? Tá doida?!)
- O que é você? - a cliente disse, em tom baixo, que Beto só pode entender por que leu seus lábios.
Ela está morta, Beto! Ela está morta e agora ela quer te matar também!
Ele engoliu em seco:
- Eu sou... um... ah... estudante?
Ela jogou o cigarro no chão, apagando-o com a ponta do coturno e afastou-se da mesa. Ele recolheu o baralho e a tolha, sob os avisos de Rosa, insistente:
Anda logo, garoto! Anda logo! Nós vamos embora AGORA!
Dispensou os outros clientes que aguardavam e saiu do Los Perdidos, sentiu-se observado por todo o trajeto até a moradia
.